sexta-feira, 28 de maio de 2021

É NATAL. MEUS PÊSAMES

 Hélder Santana

Há 22 anos os jornais locais de Macaé amanheciam o dia 25 de dezembro com uma manchete natalina tenebrosa: “Assassino de Papai Noel Ataca Mais Uma Vez”.

No Natal de Macaé, tão tradicional quanto o perú servido na mesa era um Papai-Noel servido ao rabecão do corpo de bombeiros.

O assassino agia sempre com precisão e nunca deixava pistas. O modus operandi nunca mudava: o velho era sempre encontrado com o pescoço cortado e o corpo era abandonado vestido com a roupa do Bom Velhinho, mas sem a barba postiça.

Ao longo dos anos, inúmeros delegados, investigadores, psicólogos e voluntários se dedicaram a tentar encontrar o autor ou autores desses crimes tão bárbaros em uma época tão bela.

Mães protegiam seus filhos das manchetes de jornais. Uma geração inteira de macaenses cresceu traumatizada.

Muitos velhinhos se recusavam a encarnar a figura de Papai Noel com medo do terrível fim.

Houve anos em que foi necessário importar Papais Noéis de outras cidades. Até que se chegou à conclusão de que era sempre um e apenas um Papai Noel morto por Natal.

Os funcionários da Secretaria de Segurança Pública já estavam acostumados com o vexame anual, a pressão da imprensa e dos cidadãos. Mas de nada adiantava. O Assassino de Papai Noel continuava oculto e impune.

Na Câmara Municipal foi aprovada a construção de uma estátua em homenagem ao Papai Noel Anônimo.

Este ano seu Nelson saiu de casa vestido de Papai Noel, como fazia há anos na sua cidade de origem, para distribuir presentes aos moradores de rua.

Para ele o Natal era mais que uma data: era um momento mágico. Uma oportunidade de voltar a ser criança, de acreditar no milagre da vida, de chegar mais perto do verdadeiro ser humano, da sua ingenuidade, do verdadeiro amor: o maior presente que alguém pode querer receber.

Ele acabara de chegar à Macaé para morar com a filha e, apesar dos muito pedidos da família, estava decidido a manter sua tradição pessoal.

Seu Nelson tinha ouvido e lido sobre o Assassino de Papai Noel. Tinha pensado muito sobre que tipo de pessoa poderia desenvolver este ódio pelo espírito de Natal.

Ele queria mais que entender os motivos deste monstro: queria encontrá-lo, cara-a-cara, olhar dentro dos olhos e sentir suas motivações.

Perto da meia-noite saiu incógnito para que ninguém o impedisse ou acompanhasse.

Vagou pelas ruas quase desertas de Macaé. Quase, porque encontrou alguns moradores de rua, bêbados, doentes mentais, mendigos a quem ofereceu pequenos presentes e trocou olhares profundos e abraços calorosos com palavras de esperança.

Continuou sua caminhada aparentemente sem rumo. Aparentemente, porque ele sabia exatamente o que queria encontrar. E encontrou: uma pancada na nuca desligou todos os seus sentidos imediatamente.

Já era alta madrugada quando seu Nelson acordou com uma forte dor na cabeça e a visão turva.

À medida que foi recobrando os sentidos, o medo tomou conta dele.

Estava em uma praia completamente deserta. Não havia nenhuma outra pessoa. De um lado o mar revolto, do outro restinga e escuridão. Luz, apenas a que vinha da lua.

O medo transformou-se em choque quando ele conseguiu divisar a figura à sua frente.

Não restou qualquer dúvida: aquela mistura de anjo e demônio, aquelas mãos enluvadas segurando uma faca de lâminas cortantes até de olhar, com aqueles olhos ao mesmo tempo frios, carentes e úmidos só poderiam ser dele: o Assassino de Papai Noel. Ou melhor, dela: a Assassina.

Era um belíssimo rosto que ora demonstrava ódio, ora um início de choro quase infantil.

Sentiu a presença da morte no vento que vinha do mar, no silêncio a sua volta, que só era interrompido pelo barulho das ondas do mar revolto quebrando na praia, no arrepio da pele e no gelo que tomou conta do seu corpo.

A morte, em fim, era gelada, tinha cheiro de maresia e a imagem de um mar em fúria.

Passou pela sua cabeça tentar dominar a Assassina, mas logo percebeu que seria inútil. Apesar de ser uma figura franzina, ela estava armada. Tomada por uma mistura de ódio e desespero. Ela o mataria de qualquer jeito.

Com o pânico de quem vê o próprio fim, seu Nelson só conseguiu fazer uma pergunta:

- Por quê?

Ela não respondeu à pergunta. Mas avançou para ele com sua faca erguida na mão direita. Com a mão esquerda puxou-lhe a barba enquanto repetia:

- Você não é de verdade. Nada é de verdade. Você não existe. Nada existe.

Ele já sentia a faca roçar-lhe o pescoço quando um grito pareceu paralisar o tempo.

Repentinamente a Assassina ganhou um olhar chocado. Parecia que o medo havia quebrado seu estado de ódio e histeria.

- Sua barba... É de verdade! – Disse com voz quase infantil.

- É... É de verdade. – Ele conseguiu responder, apesar do medo – Eu sou de verdade.

- Não! Não é. - Gritou histérica - Você é uma mentira. E tudo que você diz é mentira. Você não existe, não existe.

- Eu existo. E se você não me destruir eu vou continuar existindo.

Ainda em posição de ataque a Assassina afastou-se um pouco com os olhos fixos em seu Nelson. Ela agora alternava curtas risadas de surpresa com choro convulsivo.

Tomado por uma coragem repentina, seu Nelson perguntou novamente:

- Por quê? Por que matar Papai Noel? – Agora, involuntariamente, ele falava como quem fala a uma criança – Matar Papai Noel?! O símbolo do Natal, do amor, do...

- O símbolo de nada – ela gritou novamente – O símbolo da mentira. Você é uma mentira.

- Mas você ainda não me respondeu por quê.

- Porque você não trouxe nada pra mim. – Disse ela, dessa vez com uma voz especialmente infantil. – Você trouxe tudo para as outras crianças e não trouxe nada, nada pra mim. Eu só pedi a minha mãe de volta. E você não trouxe nada. Por quê? - Agora, enquanto falava, ela começou a soluçar – E quando eu puxei a sua barba eu vi que era de mentira. Por isso eu te bati. Com força.

Seu Nelson agora era pura piedade.

- E você sabe o que o meu pai fez comigo? – Continuou ela, agora em choro aberto, com um olhar que parecia em um passado distante – Ele me levou para o quarto e me bateu. Me bateu até eu desmaiar. Eu só tinha nove anos. Depois ele me trancou no quarto escuro.

Seu Nelson juntou o pouco de coragem que ainda lhe restava e perguntou:

- E depois?

- Depois eu nunca mais vi o meu pai. Ele morreu naquela mesma noite. – O olhar agressivo voltou repentinamente. Já não era mais a menina indefesa de instantes atrás. A Assassina voltara, com seus olhos frios e úmidos. – Morreu com a garganta cortada, como você vai morrer. Você não existe.

Ela avançou novamente pra seu Nelson. Desta vez obstinada.

Foi uma mistura de instinto de defesa e piedade que o fez gritar:

- Então me mate. – ela parou em choque – Se isso vai fazer com que você tenha tudo: o amor e a fantasia que nunca lhe deram, então em me dou pra você. Sou o seu presente de Natal. Pode me matar.

Ela então parou, com os olhos fixos nos olhos dele.

- Venha! Satisfaça a sua vontade, me mate.- Pela primeira vez ele conseguiu erguer a voz com firmeza.

Ainda com o olhar fixo no dele, a Assassina foi recuando. Andando de costas lentamente.

À medida que se afastava seu rosto foi tornando-se cada vez mais angelical, seu olhar mais ameno.

Deixou cair a faca de sua mão e continuou caminhando para trás. Um leve sorriso formou-se em seu rosto e lindos olhos infantis brilharam em sua face. Uma risada inocente ecoou no ar. Mais leve e mais poderosa que todo barulho das ondas. Retirou as luvas e mãos delicadas apareceram.

Naquele momento já não era mais a Assassina de Papai Noel.

Era uma menina de nove anos, inocente e feliz, que se entregou de presente ao mar atrás de si.

Um mar tão revolto quanto o passado que a levara até ali.


FIM